sábado, 3 de maio de 2014

Hobsbawn e o Bandido Social: Uma união estável diante da historiografia mundial.



A história pessoal de Hobsbawm ajuda a entender sua adesão ao marxismo. Nascido no ano da Revolução Russa, 1917, em Alexandria, no Egito, ele se mudou na infância para Viena, terra natal materna, onde perdeu ainda adolescente tanto a mãe quanto o pai, um fracassado negociante inglês que permitiu a ele ter desde cedo o passaporte britânico. Criado por parentes em Berlim na época em que Hitler ascendia ao poder, ele viu no comunismo uma contrapartida ao nazismo.

Da Alemanha, Hobsbawn seguiu para a Inglaterra. Durante a guerra, serviu numa unidade de sapadores quase que inteiramente formada por soldados de origem operária - e daí viria, mais que a simpatia, uma espécie de identificação com aquela que, segundo Marx, era a classe revolucionária. Ele estudou em Cambridge, e se filiou ao Partido Comunista, ao qual se aferraria por anos. Nem mesmo após a denúncia das atrocidades stalinistas feita por Nikita Khrushchov em 1956, quando diversos intelectuais romperam com o comunismo, ele deixou o partido.
Hobsbawm só desistiu de defender com unhas e dentes o sistema após a queda do Muro de Berlim, em 1989. “Eu não queria romper com a tradição que era a minha vida e com o que eu pensava quando me envolvi com ela. Ainda acho que era uma grande causa, a causa da emancipação da humanidade. Talvez nós tenhamos ido pelo caminho errado, talvez tenhamos montado o cavalo errado, mas você tem de permanecer na corrida, caso contrário, a vida não vale a pena ser vivida”, disse ele ao The New York Times, em 2003, em uma das poucas declarações em que admitia as falhas do comunismo – porém, sem dar o braço verdadeiramente a torcer.

Eric Hobsbawm, deixa em sua imensa produção bibliográfica um legado intelectual para o pensamento crítico contemporâneo. Desta herança sobressaem, dois livros nos quais explora o conceito de banditismo social: Rebeldes primitivos, estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos XIX e XX (1959), onde dedica um capítulo ao assunto, e Bandidos (1969), onde o desenvolve inteiramente. Estas são suas obras de história social consideradas clássicas fora do âmbito da história econômica, na qual trabalhou mais aprofundado em sua vida. A interpretação de Hobsbawm sobre o banditismo social quebra com a tradição historiográfica que considera como mero malfeitor, um foragido, a todo participante em lutas armadas contra o poder instituído, situando em um primeiro plano, no campo da investigação histórica, movimentos sociais que os preconceitos ideológicos e sociais havia deixado ao anonimato dos arquivos policiais, às páginas sensacionalistas dos jornais, lendas, relatos e contos populares. É por isso que a crítica de Hobsbawm de que os bandidos e salteadores da estrada preocupam à polícia, mas também deveriam preocupar ao historiador, é completamente justa e compreensível.

Este autor conceitua o banditismo social como uma das formas mais primitivas de protesto social organizado e situa este fenômeno quase universalmente em condições rurais, quando o oprimido não alcançou consciência política, nem adquiriu métodos mais eficazes de agitação social. Esta forma de protesto social surge especificamente e se torna endêmica e epidêmica durante períodos de tensão e deslocamento, em épocas de escassezes anormais, como fome, seca e guerras, depois destes ou no momento em que as presas do dinâmico mundo moderno se encaixam nas comunidades estáticas para destruí-las e transformá-las. O banditismo social se apresenta como uma forma pré-política de resistência aos ricos, aos colonizadores estrangeiros, às forças que de uma forma ou de outra acabam com a ordem considerada tradicional, em condições extraordinariamente violentas, provocando notáveis mudanças em um espaço de tempo relativamente curto. O bandido social apresenta uma recusa individual a novas forças sociais que impõem um poder cuja autoridade não é de todo reconhecida ou sancionada pela sociedade que ajuda e protege ao bandido. A existência desta cooperação por parte de uma população é fundamental para diferenciá-lo do simples delinquente. E ao confrontar-se com os opressores – ainda que por meios criminais - o povo oprimido vê evidenciados seus desejos mais íntimos de rebeldia. Por isso, toma o papel ou é transformado no vingador ou defensor do povo. Estes símbolos da rebeldia popular são homens que geralmente se recusam a fazer o papel submisso que a sociedade impõe... os orgulhosos, os recalcitrantes, os rebeldes individuais. Sem dúvida, como toda rebelião individual, tem seus limites. É um protesto recatado e nada revolucionário. Protesto contra os excessos da opressão e a pobreza, não contra sua própria existência. O bandido social não planeja com suas ações a transformação do mundo, não é um revolucionário, apenas tenta, no melhor dos casos, pôr um limite ou reverter a violência dos dominadores. Seu papel não é acabar com o sistema que origina a opressão e exploração contra as quais se confronta, mas fazer com que fiquem limitadas dentro de valores tradicionais que a população que o protege, considera justos. Portanto, por sua ação e ideologia, o bandido social é um reformista: age dentro do marco institucional imposto por um sistema cuja existência não é posta em juízo. Por isto, afirma Hobsbawm, para converterem-se em defensores eficazes de seu povo, os bandidos teriam que deixar de sê-lo.

Correspondeu-me aplicar o conceito de banditismo social ao estudar a resistência dos mexicanos à conquista norte-americana dos territórios arrebatados do México em 1848 e o considerei de grande utilidade para explicar especialmente o período em que a Califórnia dá lugar à criação literária sobre bases reais do personagem conhecido como Joaquín Murieta, que reúne todos os rasgos do arquétipo de bandido social. Tiburcio Vázquez, que foi condenado pelos norte-americanos em 1875, viveu por mais de 20 anos roubando ao gringo e repartindo uma parte do produto de suas andanças entre os californianos, contando com o apoio e a admiração desta população. Se Joaquín Murieta e Tiburcio Vázquez alcançaram grande celebridade graças à literatura e até o cinema (transtornados no diluído personagem de El Zorro, que não luta contra os ianques), numerosos mexicanos seguiram seus passos durante o período que vai de 1850 a 1880, aproximadamente. No Novo México e Texas temos nessas mesmas épocas, bandidos sociais do tipo vingadores, como Sóstenes L’Archevêque, de mãe mexicana, que ante a morte de seu pai nas mãos dos norte-americanos, inicia uma sangrenta vendetta que, segundo Carey McWilliams o levou a contar 23 marcas de gringos em sua escopeta: duas marcas a mais que as encontradas na escopeta de Billy The Kid.

Com seus estudos sobre o banditismo e outras formas de resistência arcaica, Eric Hobsbawm ilumina a história esquecida do mundo dos insubmissos, que, não porque seu caminho fosse uma rua sem saída haveremos de negar-lhe o desejo de liberdade e de justiça que os impulsionava a conquistarem seu espaço na sociedade.






Referência: 

HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Ed. Cia das Letras. São Paulo. 2009 




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