terça-feira, 29 de abril de 2014

Filme "Rastros de Ódio" (1956) de John Ford. Um clássico do gênero Western. Breve observação.


O Faroeste ou Farwest é um gênero cinematográfico que sempre optou por dualismos objetivando diferenciar a civilização e a selvageria através de modelos que cumprem funções bem estabelecidas no projeto civilizatório norte-americano. “Rastros de Ódio”, filme de John Ford de 1956, restabelece a tradição do faroeste revertendo esses princípios e consolida espaços simbólicos diferenciais a partir de motivos abstratos como o conflito, a fuga e a busca. Nessa nova configuração, o que se pensa dominante na verdade é dominado por um discurso velado.. Índios, cowboys, mestiços, mexicanos, se envolvem em instâncias em que, pensando estar cultivando um determinado discurso, na verdade projetam a fala do outro. Este ventriloquismo étnico é o que desloca as verdadeiras fronteiras simbólicas com que esses personagens se deparam, exibindo uma América que se identifica pela negatividade.

Enredo do filme:

Texas, 1868. Três anos após a “Guerra de Secessão”, a família de rancheiros divide suas experiências com seus vizinhos. Vivem a típica adaptatividade dos pioneiros, em uma terra seca e distante, com seus costumes cristãos de acordo com as possibilidades do território. Eis que um agente aparece, andando a cavalo. É Ethan Edwards, irmão de Aaron, patriarca que o recebe carinhosamente. Ethan lutou junto com confederados na guerra civil. Derrotado, desapareceu e andou vagando por três anos. Não se sabe qual foi seu paradeiro. Traz consigo ouro novo – dinheiro incerto que pode ter sido roubado de um banco – e muitas incógnitas. Suas maneiras são embrutecidas, rudes, agressivas. É um Cowboy, mas não um herói. Sua presença traz preocupação à casa. Seu afeto pelas crianças da família não impede que se instaure um clima de tensão, distorção, causando um certo desconforto entre os personagens envolvidos na trama.

“Rastros de Ódio”,esboça uma linha de história cultural que vai além dos simples referentes de identidade e diferença. Sua perquirição é por um tipo de modelo que ignore o passado (dissolvido na não-história do subalterno, que sempre foge) e busque no presente as características dos discursos que vão se substituindo de acordo com os valores diferenciais e vão ganhando nitidez. Provavelmente seja essa, a única representação possível para o norte-americano: o “descascar” de seu discurso hegemônico através das cicatrizes de sua ostentação, de seus entre-lugares existenciais, de suas localizações perdidas. Buscar os Estados Unidos através do que não existe mais, do que não pode mais ser contado, do que não tem voz, mas se manifesta como espectro (tal qual os espectros que Ethan deseja ver andando na terra) que sombreia – e conduz – ainda, as semânticas culturais. Ethan é a nação norte-americana buscando sua real-identidade com o Mundo. É um filme clássico onde lutas, discussões e intrigas estão à todo momento mostrando como os americanos colocam a "figura" antropológica do indígena nas suas telas de Hollywood e do mundo inteiro.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Entrevista com Slavoj Zizek ao "Jornal do Commercio" 15/05/2013

Recentemente postei aqui um texto que fiz sobre uma das ideias de Zizek, mais precisamente sobre cinema, achei aqui mesmo na internet, uma entrevista interessante que ele deu ao "Jornal do Commercio" em maio de 2013. Segue:

Conhecido como polemista e figura midiática, Slavoj Zizek está cansado de falar da cultura pop. Cada vez se vê mais como um filósofo – ainda que um filósofo pouco convencional, de ideias ousadas e quase contraditórias. Em viagem ao Brasil para lançar seu novo livro, Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (Boitempo, 656 páginas, R$ 79), trabalho densamente reflexivo, o esloveno falou ao JC por telefone:

JC – Seu trabalho passa por diversos campos teóricos, da teoria cultural ao multiculturalismo. O que, para você, o faz tão lido em diversos círculos acadêmicos?


SLAVOJ ZIZEK – Bem, eu conecto algumas semiteorias, como as de Hegel, as de Jacques Lacan e a crítica de Marx da ideologia com elementos da cultura popular, referências ao cinema, entre outros. Eu dei a psicanálise, junto com alguns amigos, uma orientação diferente. Lacan, quando eu e meus amigos começamos a trabalhar, era visto em geral como um psicanalista crítico, um pouco ligado à teoria da cultura, mas não como alguém cujo trabalho cria referências para o campo político. Existe talvez outro aspecto: eu - e é por isso que eu tenho vários opositores – provoco, quebro posições estabelecidas. Por exemplo, você mencionou o multiculturalismo. Eu sou completamente contra o tema do multiculturalismo, do establishment cultural. Eu resisto em absoluto a ser parte do multiculturalismo. Eu disse em um ensaio meu de dez anos atrás: o multiculturalismo é a principal ideologia do capitalismo tardio global. Eu não vejo nada de subversivo no multiculturalismo. Também não sou, definitivamente, parte do que é chamado de análise do discurso ou do desconstrucionismo francês de Michel Foucault e outros. Não! Eu defendo, se você quiser chamar assim, um retorno à grande metafísica. Mas, em algum momento, eu devo desapontá-lo: eu estou ficando um pouco cansado das análises culturais e políticas. Nos últimos anos, eu tenho retornado para o campo da pura filosofia. Estou ficando velho e acho que devo focar no que eu realmente tenho a dizer.

JC – Você se tornou uma figura midiática e já chegaram até a inventar uma amizade entre você e Lady Gaga. Isso atrapalha seu trabalho?


ZIZEK – Aquilo foi uma loucura! Eu simplesmente vivo no meu próprio mundo, sem ser afetado por toda essa estupidez. Eu ignoro isso. Eu sou uma pessoa extremamente solitária. Eu não vou a festas, eu não circulo por lugares. Para lhe dar uma ideia, nessa minha turnê pelo Brasil, sabia que eu não estive com outras pessoas? Não estive em nenhum almoço, jantar, ou evento social. Eu insisti nisto: eu faria palestras, daria, talvez, um número limitado de entrevistas, mas o restante do tempo eu iria ter todo para mim mesmo. Então, isso é absurdo, eu tenho uma vida muito privada.


JC – Você é um pensador que gosta de ir aonde o público está, de dialogar. Qual é o papel de um intelectual hoje?


ZIZEK – Tem algo que gosto de repetir: o grande papel dos intelectuais não é dar respostas. As pessoas me perguntam, por exemplo, sobre a crise ecológica: “O que devemos fazer?”. Eu não sei! A principal tarefa do intelectual público hoje, eu acho, é permitir, ou melhor, possibilitar que as pessoas pensem, fazer com que elas façam as perguntas certas. Eu acho que os problemas que nós temos hoje existem porque nós estamos fazendo as perguntas erradas. Nós entendemos qual é o problema real, mas a forma de formular o problema é falsa. Por exemplo, é só tomar o racismo, o sexismo, todos esses “ismos” populares de hoje. Ao menos no Ocidente, eles são traduzidos como um problema de tolerância, de que nós devemos ser mais tolerantes. Eu sou totalmente contra isso. Acho que isso é uma mistificação. Até escrevi um livro curto, lançado na Europa, com o título Elogio da intolerância. Outro exemplo é a ecologia. Todos nós sabemos que há um problema. Mas eu acho que o modo de formularmos o problema costuma ser errado. Por exemplo, todas essas coisas de que eu não gosto, mesmo em Evo Morales, as celebrações de alguma “Mãe Natureza”, com uma abordagem holística, e a visão de como o capitalismo a destrói e como nós a exploramos em excesso – eu não aceito de forma alguma essa visão. Qualquer celebração da natureza que leve em conta alguma ideia de “sabedoria” é, para mim, totalmente errada. Então, não é que eu ofereça respostas fáceis. Eu só quero que as pessoas vejam os problemas econômicos de hoje. Acho crucial convencer as pessoas de que o problema não são a falta de regulações do mercado, os banqueiros gananciosos ou seja lá o que for. O problema está no sistema. Estamos começando a perceber lentamente que existe algum antagonismo desequilibrado, uma falha de construção, por assim dizer, no nosso capitalismo global.

JC – Como se pode continuar a interpretar o mundo de hoje a partir do marxismo?


ZIZEK – Ok, essa é uma questão bastante complicada, mas a primeira coisa que eu diria é que nós, para continuarmos o trabalho de Marx, devemos realmente começar de novo e voltar nossas ferramentas críticas para o próprio marxismo. Claro que não se pode culpar Marx por Stalin ou coisas do tipo. Contudo, o fato é que a experiência comunista marxista global, a experiência de projetos políticos que foram inspirados pelo marxismo no século 20, é, basicamente, uma experiência catastrófica. E eu acho que nós devemos nos perguntar a seguinte questão: será que Marx foi pouco radical? O meu segundo movimento é, em dado ponto, retornar de Marx a Hegel. Eu acho que Hegel não foi um louco racionalista que pensava que na sua mente e na sua lógica ele podia deduzir tudo. Ele era bastante aberto à contingência da história. Nós precisamos disso. Nós precisamos quebrar essa visão marxista de que a história se move do capitalismo para uma ordem superior, o socialismo ou algo do tipo. A história é aberta, na minha opinião. De forma espontânea, ela provavelmente se move em direção a alguma catástrofe.

JC – E por que Hegel é tão importante para entender o mundo de hoje?


ZIZEK – Eu sou bem mais um pessimista histórico, por assim dizer. Eu penso a alienação não no sentido marxista, mas no sentido da não transparência da história. Você faz algo e o resultado é totalmente diferente do que você esperava; você planeja a libertação e o resultado é o terror e o horror. Eu acho que nós devemos ficar mais conscientes disso, dessa impenetrabilidade da história, de como tudo termina de forma diferente do que esperávamos. Hegel estava profundamente ciente disso. Novamente, toda a história da esquerda radical no século 20 demonstra isso. Olhe para a Revolução Chinesa. A maior revolução comunista terminou fazendo do Partido Comunista Chinês o mais implacável e eficiente regulador do novo sistema capitalista. Nós devemos nos preparar para essas surpresas.


JC – E qual é o papel de Lacan para ajudar a entender Hegel?


ZIZEK – Lacan é para mim especialmente importante. Por um lado, ele me dá conceitos para poder ler Hegel e também para compreender como a ideologia funciona hoje. É fascinante dizer hoje que, com exceção de algum louco fundamentalista religioso, nós não temos mais ideologia, somos todos cínicos pragmáticos. Mas não, eu acho que mais do que nunca a ideologia é hoje parte da nossa vida cotidiana. Na verdade, é uma parte até invisível.



JC – Em tempos pós-modernos, você procura trabalhar com a noção de totalidade, de uma teoria que dá conta de toda a sociedade, não é?


ZIZEK – Sim, eu recuso totalmente essa ideia pós-moderna de que não existem mais grandes narrativas, que tudo são só moléculas dispersas. Em todos os níveis, das teorias e da política, eu acho que nós devemos retornar completamente à ideia da totalidade. Eu rejeito totalmente essa ideia de que, como diz Emmanuel Levinas, a noção filosófica da totalidade prepara o caminho para o totalitarismo político. 


JC – Esse é o problema que você vê em movimentos como o Occupy Wall Street e a Primavera Árabe?


ZIZEK – Eu não simplesmente os critico. Por exemplo, eu esperava o que aconteceu no Egito. Contudo, o resultado disso não é simplesmente zero. Ainda que agora nós tenhamos um pacto entre os militares corruptos pró-Estados Unidos e os fundamentalistas muçulmanos, não vamos esquecer que alguma coisa sobrevive dos protestos de dois anos atrás. O que ficou foi principalmente uma mobilização incrível da sociedade civil: mulheres, estudantes, sindicatos, etc. Isso é agora um fator bastante forte na vida política do Egito. E a luta não está terminada. Eu não sou simplesmente um pessimista, mas, se você me perguntar se eu vejo algum lugar a se chegar hoje, um movimento político com que eu me identificaria completamente, não há nada muito grande. O movimento de que mais me aproximo é o da Grécia, o Syrila, coalização radical de esquerda que quase ganhou a última eleição.

JC - E o que você vê de positivo no Syrila?


ZIZEK - É difícil entrar em detalhes, mas é esse o motivo: a esquerda até agora sempre foi cooptada pela divisão entre um realismo comprometido - das reformas, das pequenas mudanças feitas dentro do sistema, da busca por fazer o capitalismo mais socialmente sensível, etc -, e um dogmatismo de princípios, mas que é de fato impotente. Eles de certa forma superam essa cisão. Eles têm atitudes baseadas em princípios, contudo, ao mesmo tempo, são impiedosamente pragmáticos.

JC - Parte da sua notoriedade vem de suas palestras e discursos. Qual pensa que é a função dessas conferências?


ZIZEK - Para mim, conferências e palestras são puramente instrumentais. Eu quero levar as pessoas a lerem meus livros. É isso que é importante. Eu acho que eu não sou sequer muito bom. Nas conferências e, principalmente, nas minha entrevistas, eu apenas digo, de forma simplificada mas ainda confusa, o que está dito de forma bem melhor nos meus livros. Eu olho para isso de uma forma totalmente instrumental. Tudo que eu realmente tenho a dizer está nos meus livros.

JC - A teoria pode ajudar a mudar o mundo?


ZIZEK - Faço minhas obras pelo puro amor à filosofia, não para contribuir para a solução da crise da humanidade ou coisa do tipo. Eu sou, por assim dizer, um autor metafísico bastante tradicional. Eu acredito na teoria que serve unicamente a si mesma; você a faz porque ela é uma bela teoria. Mas penso também que esse tipo de teoria, a longo prazo, fornece os melhores resultados práticos. Quando você quer fazer uma teoria que vai servir imediatamente a um propósito social, ela vira uma teoria ruim que não tem efeito nenhum a longo prazo.




Referência: http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2013/03/15/slavoj-zizek-estou-cansado-das-analises-culturais-e-politicas-76499.php

"República do Coroneis": Breve observação de um período marcado pelo jogo político entre as elites.


O período que em questão (1889-1930) apesar de ter sido muito examinado ao longo da década de 1980 por vários estudiosos, e alguns estrangeiros, há muito tem deixado de ser objeto de interesse de novos especialistas e pesquisadores, principalmente no que diz respeito aos seus aspectos políticos. Este esvaecimento progressivo do tema fez com que alguns "esquematismos analíticos" fossem consolidados, em que pesem pesquisas recentemente produzidas. Em relação ao coronéis, pesquisas recentes direcionam que as lideranças que ocupavam o poder na Primeira República não provinham exclusivamente dos estados de Minas Gerais e São Paulo. Vinham de vários estados do Brasil. Entretanto, é sábio que entre os vinte estados e o DF (Rio de Janeiro, na época) tinha aqueles mais destacados politicamente.

Geralmente eram eles compostos por oligarquias estáveis, economias fortes e dinâmicas, estados mais populosos ou que tivessem uma grande importância no período imperial. Este conjunto de características contribuía para que um determinado estado ou uma aliança ganhasse projeção politica ao longo do período. Pode-se acreditar que os estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Pernambuco eram de imenso destaque nacional. No que se refere às alianças havia várias compostas não exclusivamente por Minas e São Paulo. Elas funcionavam como coalizões provisórias que mudavam a partir dos diferentes cenários e em atenção a interesses de ocasião. Desta maneira, Minas Gerais se aliou ao Rio Grande, à Bahia e ao Rio de Janeiro para eleger seu candidato Afonso Pena, em 1906. São Paulo se aliou a um amplo conjunto de estados para eleger seu candidato Washington Luis, em 1926. Poderíamos dar vários outros exemplos. O fato é que a chamada "café-com-leite" foi um fenômeno dos anos 20. Até então uma aliança entre Minas e São Paulo não havia acontecido.

Já o fenômeno do Coronelismo, o termo é um conceito que corresponde à troca de votos por favores políticos, ocorrido por todo o Brasil ao longo do período. Claro que existe uma vasta discussão historiográfica em torno do conceito, mas há um consenso de que o fenômeno não ficou somente restrito às oligarquias nordestinas. Havia sim, coronéis gaúchos, mineiros, paulistas, etc. Sua importância era grande para a movimentação econômica e social de cada estado. Como chefes municipais, os coronéis controlavam e detinham o poder dos votos da maior parte dos eleitores e, por estarem enfraquecidos financeiramente depois da constituição de 1891 - que alocou a maior parte dos recursos financeiros nos cofres dos estados, esvaziando as finanças municipais - se valiam da autoridade para que os votos pudessem permutar por benefícios, tais como cargos, nomeações, obras públicas, entre outros.

Se prestarmos atenção aos dias atuais, como diz um prof. meu : "não é mera coincidência", o jogo politico sofreu diversas alterações, mas definitivamente, a sua essência continua sendo a mesma. 




Referência:

LEAL, Nunes Victor. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo. Ed. Cia das Letras, 2009

sábado, 26 de abril de 2014

Linha do tempo da Ditadura Militar no Brasil.

Pra quem gosta de um História interativa, segue o link pra ter um observação geral de como eram os tempos de "linha dura" em nossa nação:


http://super.abril.com.br/jogo-ditadura-militar/

Poesia da semana: "Circulo Vicioso" do grandioso Machado de Assis.

Sou mais um fã da escrita desse imponente literário brasileiro, que soube como poucos, mostrar a vida de uma forma acentuada em seus escritos. Logo abaixo, a poesia nos convida a observar como "a vida do vizinho é melhor do que a nossa" e com seu estilo irônico, entretanto coerente, coloca-nos a perceber que até na Natureza existe "insatisfações" com suas devidas qualidades. 



Círculo Vicioso


Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,

que arde no eterno azul, como uma eterna vela !

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:


- Pudesse eu copiar o transparente lume, 

que, da grega coluna á gótica janela,

contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !



Mas a lua, fitando o sol, com azedume:


- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela 

claridade imortal, que toda a luz resume !

Mas o sol, inclinando a rutila capela:


- Pesa-me esta brilhante aureola de nume... 

Enfara-me esta azul e desmedida umbela...

Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

O "rock'n roll" da Filosofia Contemporânea: Nota sobre Slavoj Zizek.



Filho único, Slavoj Zizek nasceu em 1949 e passou grande parte de sua vida em Ljubliana, na Eslovênia, quando a pequena capital alpina era ainda integrada a Iugoslávia comunista. Como muitos adolescentes dos antigos estados satélites da URSS, Zizek consumia avidamente a cultura popular ocidental em vez de televisão, livros e filmes aprovados oficialmente. Muito de seu conhecimento do cinema hollywoodiano - um tema que ele escreveu extensivamente bem - foi adquirido durante sua adolescência, quando passava um bom tempo num cinema especializado na exibição de filmes estrangeiros.

Como pessoa pública, Zizek usa a provocação, que é compensada por uma personalidade altamente engajada e afável. Ele crê que o Ocidente se libertou muito prontamente da era comunista e fala para audiências ocidentais de uma posição clara e assumida de profundo conhecedor do assunto. O lado provocativo de Zizek é equilibrado pelo seu impressionante instrução de filosofia e política e por uma apresentação efetiva de si mesmo como um intelectual com um "supercérebro" maior do que a realidade e explosivo em ideias. Ao se engajar em polêmicas, Zizek propositalmente evita brigas ou disputas abertas, uma tática esquematizada para criar um espaço em que a audiência ou o interlocutor tem de se posicionar sobre suas responsabilidades politicas e pessoais. Em seus escritos "(...) Zizek se ocupa principalmente sobre politica, porém sempre explora esse tema por meio de uma gama de assuntos e interesses. Eis alguns dos muito temas sobre os quais escreveu: filmes de Hollywood, ficção popular (Stephen King, Artur Conan Doyle, Agatha Christie), alta literatura (Sófocles, Shakespeare, Kafka), óperas (Mozart, Bizet, e Wagner) (...)". 
Como nosso filósofo abrange diversas áreas de conhecimento acerca de nosso mundo, segui um tema do qual sou muito afetuoso, e que é de muita relevância em nossa sociedade: o Cinema. Zizek, faz análises de diversos filmes e uma delas é sobre um que eu assisti há alguns meses atrás chamado Psicose (1960) do diretor Hitchcock, onde para Zizek, encapsulam a abstração de que cada imperativo mantido pelo superego tem sua contrapartida obscena. Para Slavoj Zizek, os três pisos da casa na colina em Psicose correspondem aos três níveis principais na psique do protagonista do filme, Norman Bates. O piso superior é o superego de Norman; o piso térreo seria o seu ego; e, o porão, seu id, seu inconsciente. A interconexão entre o primeiro e o último desses níveis é mostrada na cena em que Norman leva sua mãe do quarto, no piso superior da casa, para o portão, para assim para escondê-la: a reação da mãe é repreendê-lo, mas ela também aproveita a oportunidade para flertar com o filho.

Ao evitar traçar uma linha ou divisão entre o superego e a obscenidade no inconsciente, Zizek aceita formalmente que todos nós estamos implicados no mais sombrio dos desejos. Essa ideia fica clara em outro filme de Hitchcock - que ainda não assisti - em Janela Indiscreta (1954). Comenta que, "lidando com uma injúria recente, Jeff investe seu tempo observando a vida dos vizinhos. Ao mesmo tempo que observa, ele evita se envolver sexualmente com sua namorada, Lisa alegando que não deseja se comprometer, e nem mesmo se casar. Mas, o que Jeff vê pela janela são as fantasias do que poderia acontecer com ele e Lisa. Eles poderiam se tornar recém-casados felizes; ele poderia abandoná-la; eles poderiam passar o tempo livre juntos, como um casal normal que tem um cãozinho e é complacente com a rotina que mal esconde seu desespero; ou finalmente, ele poderia matá-la."

Como o enredo de Janela Indiscreta mostra Jeff descobre que um de seus vizinhos assassinou a esposa. Numa das cenas, jeff é confrontado pelo autor do crime, de quem ele tenta desesperadamente se livrar por meio de uma cortina de flashes. Zizek nota que essa cena "foi rodada de um modo incrível, completamente irrealista". A cena mostra perfeitamente o efeito mobilizador da própria fantasia de Jeff, e então o assassino reflete o desejo de Jeff de matar Lisa. Longe de traçar uma linha entre vilão e herói, este filme revela como o "herói" é o criminoso que o protagonista observa.

Zizek, na minha opinião tem um imenso leque de observações analíticas, complexas que deixam qualquer leitor (especialista ou não) acha uma leitura densa e ao mesmo tempo bastante radical, devido ao seu extremismo à esquerda. Entretanto, não deixo de negar, que é um dos maiores filósofos da atualidade, fazendo sempre comentários dos quais assustam qualquer "conservador" contemporâneo. Esse pequeno texto, ainda não chega a ser 1% do que realmente Slavoj Zizek retrata do mundo atual, mas creio que é de grande importância expormos nossas visões para nos desgarramos dessa atonia que é nossa sociedade.
Quem quiser poder se aprofundar mais no assunto sobre Zizek, listei abaixo alguns livros, e filme que podem ajudá-los a desvendarem muito mais sobre suas ideias, segue referências:






ZIZEK, Slavoj e DALY. Arriscar o Impossível: conversas com Zizek. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2006.

O Guia Pervertido da Ideologia (filme). Produção: Zietigeist. 2006

ZIZEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo. Ed. Boitempo, 2008

____________ Vivendo no fim dos tempos. São Paulo. Ed. Boitempo. 2007

Resenha sobre o livro: "Brasil em tempo de cinema" Jean Claude Bernadet.



BERNADET, Jean Claude. Brasil em Tempo de Cinema – Ensaio sobre o Cinema Brasileiro de 1958-1966. São Paulo. Cia das Letras. 2007



Este livro de Jean-Claude Bernardet, “Brasil em Tempo de Cinema – Ensaio sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966”, relançado no primeiro semestre de 2007 pela editora Companhia das Letras, comemora seus quarenta anos (1ª edição, Civilização Brasileira – 1967) e mantém-se ainda como um texto clássico sobre o assunto. Sem parecer datado, este breve estudo acerca do cinema brasileiro é um painel do país que emergiu no momento histórico posterior à Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), isto é, inicia-se com o fim da ditadura de Getúlio Vargas, passando pelo do populismo com a Era Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, e chegando à derrocada das propostas populistas com o golpe civil-militar de março de 1964, que derrubou o governo de Jango.
O Brasil rural e agroexportador do início do século XX, cede espaço para uma nação que se urbanizava e crescia consideravelmente seu parque industrial, embalado pelas políticas nacionalistas e propagadas pelos governantes. Essa junção sociopolítica e econômica permeou (e influenciou) o desenvolvimento de estéticas narrativas dentro do cinema brasileiro, em um período muito importante de nossa História, ou seja, o final da década de 1950 até 1967, ano que antecede ao fechamento total do regime militar e das resistências ao mesmo, com a edição do Atos Institucionais. O autor, Jean-Claude Bernardet, nasceu na Bélgica, radicado no Brasil desde 1949, sempre exerceu alguma atividade relacionada ao cinema brasileiro. Nos anos de 1960, juntamente com Nelson Pereira dos Santos e Paulo Emilio Salles Gomes, Bernardet tentou criar um curso de cinema na futura Faculdade de Comunicação de Massas, ligada à então criada Universidade Nacional de Brasília (UnB). No entanto, os acontecimentos de março de 1964 abortaram tais planos, afastando involuntariamente Bernardet dos meios acadêmicos.

Em 1967, Brasil em Tempo de Cinema foi editado em forma de ensaio analisando quase uma década do cinema brasileiro (1958/1966); uma cinematografia vinda das chanchadas da Atlântida, das tentativas industriais da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e do surgimento, principalmente, do chamado “neo-realismo” brasileiro, indo posteriormente no movimento do “Cinema Novo”. O auge dessa proposta é representado pelo filme Terra em Transe (1967, Glauber Rocha), que foi interditado pela censura do governo Costa e Silva, no mesmo ano de lançamento do livro de Bernardet. Tal obra é comentada no livro, com base apenas em seu roteiro, uma vez que Jean-Claude não assistiu ao filme devido à sua proibição.

Esse episódio fora marcante, pronunciando o declínio do movimento cinemanovista e a emergência de perspectivas cinematográficas mais diversificadas (e contestatórias) como o Cinema Marginal. No final da década de 1960, o cinema brasileiro enfrentava ainda uma enorme crise diante do avanço da televisão, que se difundia como o grande veículo de comunicação de massa, devido às “facilidades” em adquirir eletrodomésticos pela classe média, então beneficiada pelas políticas econômicas instituídas pelos governos militares, que ampliaram e fomentaram o endividamento externo do país, principalmente aos americanos.
Escrito no auge dessa agitação política e cultural, na qual as atitudes e os discursos ideológicos se acentuavam tanto à direita quanto à esquerda, o livro de Bernardet é determinante para entendermos grande parte da formação estética, política e social do cinema brasileiro que foi gerado em um tempo de extremos, onde a vontade pela construção de uma sociedade mais justa chocava-se com as forças reacionárias da política brasileira ainda dominada pelos resquícios do arcaísmo oligárquico e, ao mesmo tempo, pela influência cultural advinda dos “modelos” ditados pelo capitalismo industrial simbolizado pelos norte-americanos.
Vistos recentemente, alguns dos filmes analisados por Bernardet em seu livro comprovam toda a influência, entusiasmo e resistência que aquele cinema (precário tecnicamente, devido à falta de recursos) expressava numa época em que as esperanças sociais e políticas traduziam-se em formas renovadas de manifestações culturais, voltadas para uma realidade nacional repleta de contrastes sociais, políticas e econômicas.

O Cinema Novo, distinto, poético e instigante, às vezes profundo em sua linguagem influenciada pela “intelligentsia” cinematográfica, à partir de 1964 torna-se cada vez mais alegórico e distante do público, em parte devido à implacável perseguição da censura. No entanto, as películas analisadas por Bernardet refletem uma sociedade em movimento; um transe apático que conduzia sempre a lugar nenhum – o Brasil permaneceu “parado” por mais de duas décadas.
Dividido em sete capítulos, o livro de Bernadet faz um aprimorado estudo sobre o cinema brasileiro daquele período. No total, Bernardet analisou e comentou oitenta e dois filmes produzidos no Brasil entre 1958-1966 (as fichas técnicas, completas, encontram-se no final do livro – págs. 201/209), dirigidos (entre outros) por Alex Viany, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman e Carlos Diegues.
Esse Brasil é representado basicamente pela classe média da época, de onde vieram muitos dos cineastas. Jean-Claude ainda faz comentários sobre as políticas culturais e principalmente seu público alvo, focando a importância do cinema brasileiro como representante da identidade cultural do país.


Segundo Bernardet:



[...] Ele é oriundo da própria realidade social, humana, geográfica etc, em que vive o espectador; é um reflexo, uma interpretação dessa realidade (boa ou má, consciente ou não, isto é outro problema). Em decorrência, o filme nacional tem sobre o público um poder de impacto que o estrangeiro não costuma ter. Há quase sempre num filme nacional, independente de sua qualidade, uma provocação que não pode deixar de exigir uma reação do público.


De todos os personagens do cinema brasileiro analisados por Bernardet, Antônio das Mortes (vivido por Maurício do Vale) é o mais emblemático e o que traduziu melhor aquela ocasião (1964) de incertezas que assolava o país, mesma espécie de encruzilhada do destino. Bernadet dedica-lhe seu livro.
O livro de Jean Claude é empolgante e leva o leitor a fazer consideráveis estudos sobre a História recente do Brasil por meio do cinema e de sua linguagem e estética peculiares. Podemos também, no decorrer de uma leitura crítica do texto, perceber algumas contradições obscuras que eram características da oratória conservadora da elite cultural dos anos de 1950/1960 ligadas ao cinema (críticos, jornalistas, historiadores de cineastas de formação neorealista). Para o autor, o cinema nacional é a “identificação do povo com sua cultura”, mas em seu ensaio analítico (com as produções de 1958 a 1966), vários filmes escaparam de sua apreciação crítica, como inúmeras chanchadas na fase final do gênero mais popular da cinematografia brasileira.

Na relação dos filmes apreciados por Bernardet, é lamentável a exclusão de obras como O Homem do Sputinik (1958 – direção: Carlos Manga), uma chanchada que demonstra puramente a importância do gênero na História do cinema brasileiro, negando o estereótipo de “cópia pobre” dos filmes de Hollywood. As chanchadas, de ingênuas, possuíam apenas os títulos, pois eram irônicas, escrachadas e divertidas ao retratar a sociedade brasileira do pós-guerra. O Cinema Novo, produziu o filme Macunaíma (1969 – direção Joaquim Pedro de Andrade), atestando que a severidade divulgada por cineastas como Glauber Rocha não poderia ser regra para a construção de um cinema de autor, engajado politicamente e inovador como arte. Sábiamente, Joaquim Pedro de Andrade absorveu aspectos das chanchadas, inserindo-as no contexto estético do Cinema Novo, comprovando que o radicalismo ou o purismo dentro da arte cinematográfica não deve se transformar em norma inquestionável, em meras leis a serem seguidas.
Esse belo ensaio de Jean-Claude Bernardet, suscita o debate, gera polêmicas, dúvidas e resgata uma época particularmente rica do cinema brasileiro e de nossa história. Obras dessa importância, felizmente, são fadadas à atemporalidade, como o é Antônio das Mortes, ótima metáfora sobre um Brasil do passado, repleto de incertezas. Transcorridos mais de quarenta anos, muitas dúvidas ainda permanecem intactas.








BIBLIOGRAFIA:

BERNADET, Jean Claude. Brasil em Tempo de Cinema – Ensaio sobre o Cinema Brasileiro de 1958-1966. São Paulo. Cia das Letras. 2007

Legado do Império: Um República entre aspas.

Quando os turistas, e as pessoas que ali vivem no Centro do Rio de Janeiro, veem a estátua equestre do nosso primeiro presidente, o alagoano Marechal Deodoro da Fonseca, dar um ar um tanto triunfal diante de nós. Foi feita justamente pra isso, para demonstrar toda sua imponência e soberania à frente de todos que ansiavam por um novo modo de politica para o Brasil. Entretanto, essa "mudança" ocorreu de outra maneira como veremos a seguir.













Estátua do Marechal Deodoro da Fonseca. Inaugurada em 1937, pelo então ex-presidente Getúlio Vargas, durante o Estado Novo.










Marechal Deodoro da Fonseca




Marechal Floriano Peixoto, o "mão de ferro"




Não sei se muitos de vocês perceberam, mas nossos dois primeiros presidentes foram militares, e nenhum dos dois eram republicanos, em qualquer sentido que se possa encaixar ao termo. O nosso alagoano Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892) veterano da Guerra do Paraguai, monarquista até a "última sujeira do dedo mindinho" e amigo do imperador D. Pedro II. Não pensava de forma alguma derrubar o governo instaurado, nem sequer pensava em ser presidente. Daí é que surgiram os primeiros roldões da nossa política brasileira. Pelo fato de que naquela circunstância tratava-se de derrubar o gabinete liberal do Visconde de Ouro Preto, Afonso Celso de Assis Figueiredo, na chamada "Questão Militar". E aí aconteceu de que os militares ligados ao Marechal Deodoro, espalharam a notícia de o ministro ordenara a sua prisão. Mas a decisão do líder militar de dissolver a monarquia ocorreu da informação de que outro politico liberal, o gaúcho Gaspar da Silveira Martins, seu arquirrival pessoal, assumiria o novo gabinete. E de forma nada republicana e hostil, decretou-se a "República".

O primeiro desafio, por conseguinte foi fazer com surtisse efeito. A família imperial foi banida para a Europa (ás escondidas), uma nova constituição fora promulgada (1891) e formalmente, instalada uma descentralização administrativa. Claro que formalmente: porque a constituição assegurava o Federalismo, mas os governos locais não podiam entrar em contradição com o governo central. E assim, a República nascera de uma sob uma ditadura militar. Quem pode afirmar isso são os opositores durante o segundo período presidencial (1891-1894), sob a "mão de ferro" do marechal Floriano Peixoto, alagoano como Deodoro: censura à imprensa, perseguições politicas, execuções.
Em seguida em 1894-1898, o Brasil elege o primeiro civil para a presidência: Prudente de Moraes e depois Campos Sales (1898-1902), eram republicanos da velha estirpe. Seus mandatos foram momentos de distensões politicas, embora a força excessiva do Estado contra a população não tenha deixado de ser usada, como no trágico episódio em Canudos, na região árida da Bahia (1896-1897). Ambos constituíram o Partido Republicano durante o império, apoiaram a luta abolicionista e compuseram a Constituinte que produziu a primeira Carta do novo regime. Havia décadas se empenhavam em reformas sociais e politicas, porque estavam diante de todos os problemas que o país estava passando. Essa geração de 1870, era um grupo de homens letrados, e da politica comprometidos com os valores à época chamados de "civilizados", ou seja, fim da escravidão, participações politicas, educação. Nesse perfil podemos citar: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Quintino Bocaiúva, André Rebouças, que defendiam a ruptura com as tradições do império e reivindicavam um governo que acreditavam ser científico, tendo como exemplos, as potências da época: Inglaterra e França, uma monarquia e uma república.
Prudente de Moraes faz a primeira tentativa séria de instaurar um governo de fato republicano. Para iniciar, foi eleito, ao contrários dos dois primeiros presidentes. Comparado com o estilo viril de Floriano, sofria com piadas infames do tipo: "ele é prudente demais". Pressionado, acabou despejando toda sua ira na cidade de Antônio Conselheiro e seus discípulos.
Já Campos Sales, paulista como o primeiro, se dedicou à recuperação econômica. Nos anos anteriores, vivera-se uma economia "de guerra" agravada pela crise do encilhamento, em parte resultado da polêmica gestão de Rui Barbosa, como ministro da Fazenda. 

Podemos observar o quão nosso país teve momento de intensas correntes politicas e filosóficas, e que boa parte de nossos governantes apenas enxergavam sua pequena corja de interesses para poderem adquirir mais forças. Isso acontece até os dias atuais, mesmo com toda a fiscalização que acaba por cair em maus gestores e assim corrompendo-se facilitando as práticas mais enojáveis de um político.


Referencias: 

ARQUIVO NACIONAL. Os presidentes e a República. Rio de Janeiro: 2001

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. 3° ed. São Paulo: Brasiliense, 1989

http: //www.rhbn.com.br

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Entrevista com o grande Historiador Contemporâneo Carlo Ginzburg. Recente, fala sobre seu novo livro: "Medo, reverência, terror” .


 O historiador italiano Carlo Ginzburg discute nova coletânea de ensaios, nos quais analisa peças de propaganda e obras de arte políticas, e avalia a evolução da ‘micro-história’, campo de pesquisas que ele ajudou a difundir


Por Guilherme Freitas

O historiador italiano Carlo Ginzburg, de 74 anos, é um dos pioneiros de um ramo da disciplina conhecido como “micro-história”. O termo, popularizado numa coleção de livros editada por ele nos anos 1980, abrange pesquisas que, em vez da trajetória de nações ou de grandes eventos e seus protagonistas, abordam o passado por meio de figuras anônimas e fatos cotidianos, aprofundando-se em casos particulares para iluminar estruturas mais amplas da sociedade. Ginzburg ajudou a moldar o gênero em obras como “Os andarilhos do bem” (1966), sobre praticantes de um culto de fertilidade na Itália dos séculos XVI e XVII, e “O queijo e os vermes” (1976), no qual investigou a vida de um moleiro da região italiana de Friuli preso e executado sob acusação de heresia em 1599.

Nos quatro ensaios de seu novo livro, “Medo, reverência, terror” (Companhia das Letras), Ginzburg lança esse olhar sobre imagens que se tornaram ícones políticos, de quadros de Pablo Picasso e Jean-Louis David a propagandas de alistamento no Exército. Mas ele continua menos interessado nos protagonistas, sejam artistas ou chefes de Estado em guerra, do que no efeito das imagens sobre o público anônimo. 

No célebre cartaz do Tio Sam com os dizeres “Eu quero você”, e em peças semelhantes de outros países na época da Primeira Guerra, Ginzburg encontra elementos (o olhar frontal, o dedo estendido em direção ao espectador) que remetem a representações medievais de Jesus como alguém que tudo vê. Na capa da primeira edição de “Leviatã” (1651), clássico do filósofo britânico Thomas Hobbes sobre a teoria do contrato social, o Estado é representado como um ser gigante cujo corpo é constituído de inúmeras pessoas, que olham com reverência para a figura formada por elas, sublinha o historiador. Ele mostra ainda como pinturas de Picasso e David, “Guernica” (1937) e “A morte de Marat” (1793), incorporam estruturas clássicas e signos religiosos para dar conta de fenômenos políticos de seu tempo (a Guerra Civil espanhola e os desdobramentos da Revolução Francesa).

Em entrevista por e-mail, Ginzburg analisa um elemento comum entre os ensaios: a ideia de que poderes políticos se apropriam da linguagem da religião para despertar reações de medo, reverência ou terror. Fala também sobre seus métodos de trabalho e analisa a evolução da micro-história nas últimas décadas.

Nos ensaios sobre “Leviatã”, de Hobbes, e cartazes de alistamento para a guerra como o do Tio Sam, você encontra em discursos e na iconografia política elementos que mostram poderes seculares “invadindo” terreno da religião. Como funciona esse fenômeno e quais são suas consequências?

A secularização — termo conveniente mas ambíguo — não é um fenômeno pacífico. É um fenômeno conflituoso e em andamento, que vem invadindo esferas da vida pública e privada dominadas pela religião há séculos ou milênios. (Pela necessidade de concisão, vamos assumir que o significado do termo “religião” é evidente, o que não é o caso.) As imagens são um exemplo desse tipo de invasão: por trás do cartaz do Tio Sam e de seu ancestral britânico, o cartaz de Lord Kitchener, podemos ver gestos que já foram atribuídos a Jesus. Hobbes chamava Leviatã, o símbolo do Estado, de “um Deus mortal”: uma imagem atemorizante. A luta contra ou a favor do secularismo continua diante de nossos olhos. Há poucos anos alguém falou em “retorno das religiões”; mas elas nunca haviam ido embora.

Em outros ensaios, você analisa duas pinturas de Jacques-Louis David e PabloPicasso, “A morte de Marat” e “Guernica”. O que chamou sua atenção nessas obras de arte concebidas como intervenções políticas? 

Por um lado, ambas se relacionavam diretamente com um contexto político imediato e podem ser pensadas como atos políticos. Por outro, tiveram impacto a longo prazo, sobre públicos muito distantes dos originais, no espaço e no tempo. Esse paradoxo aparente pode ser explicado pela análise da linguagem — o estilo, a iconografia — usada por David e Picasso, respectivamente. Nos dois casos, a linguagem tinha raízes (enfatizo o plural) longínquas e heterogêneas. Além disso, ambas nos confrontam com uma presença e uma ausência: a presença das vítimas (Marat, os habitantes de Guernica) e a ausência dos assassinos (Charlotte Corday, os aviões fascistas). Há muito que pensar sobre essas imagens. Costumo insistir na necessidade de “ler devagar” (a definição de Nietzsche para a filologia). Insisto também em “olhar devagar” para as imagens.

Em vez da “grande História”, voltada para o destino das nações e seus protagonistas poderosos, você costuma abordar figuras que, como diz sobre o moleiro Menocchio de “O queijo e os vermes” (1976), são “como nós”. Como a micro-história pode mudar a forma como se pensa a História?

É importante fazer um acréscimo: em “O queijo e os vermes” escrevi que Menocchio é “como nós", mas também “diferente de nós”. Um ancestral — mas também o fragmento de um mundo distante e opaco que foi destruído. Essa distância não pode ser superada pela empatia. Empatia, a identificação emocional com alguém, é um atalho que não funciona, pois pressupõe uma proximidade que não existe. O que precisamos é de filologia, num sentido amplo: precisamos aprender sobre uma linguagem (uma cultura) que é diferente da nossa. Mas concordo totalmente com o que você diz sobre história nacional. Eu quis abordar Menocchio, o moleiro da região de Friuli, com uma perspectiva diferente, ampla — mais ampla que Friuli, mais ampla que a Itália. Se não me engano, a recepção do livro confirma que consegui. A micro-história muda nossa percepção da História de muitas formas. Ela nos ensina a não desdenhar de nada (nem de possíveis temas, nem da escala de observação). Ensina também que a comparação, explícita ou implícita, é inevitável.

Você já citou como influências os historiadores franceses da “Annales”, que enfatizavam temas sociais, e o filósofo italiano Antonio Gramsci, principalmente as teses dele sobre o “subalterno”. Que impacto eles tiveram na sua concepção de micro-história?

Fui profundamente influenciado por um dos historiadores que criou a revista “Annales”: Marc Bloch. Li seu livro “Os reis taumaturgos” (1924) quando tinha 20 anos. Foi uma revelação. Eu não imaginava que um livro de História podia focar em um tema tão marginal como o poder de curar escrófula [tuberculose linfática que causava, entre outros sintomas, infecções de pele], atribuído aos reis na Inglaterra e na França. Nem que um tema tão marginal pudesse revelar algo profundo e crucial como as atitudes enraizadas no povo em relação ao poder real. Mas quando li Bloch eu já estava lendo os “Cadernos do cárcere”, de Gramsci [escritos entre 1929 e 1935 e publicados nos anos 1950], pensador que foi para mim, como para muita gente ao redor do planeta, fundamental. Então procurei traços de culturas subalternas na obra de Bloch — pessoas anônimas, homens e mulheres que vieram de longe para se submeter ao poder de cura dos reis. Em retrospecto, eu me vejo como um estudante participando do diálogo contínuo entre História e Antropologia, que atraiu muitos historiadores nos anos 1960 e 1970, na Itália e em outras partes do mundo. Mais ou menos na mesma época li “Rebeldes primitivos”, de Eric Hobsbawn, assim como o ensaio que ele publicou na revista “Società”, do Partido Comunista Italiano, intitulado “Por uma história das classes subalternas” (não sei dizer se esse texto foi publicado em outras línguas). Era uma leitura dos cadernos de Gramsci pelo prisma da antropologia social britânica. Fiquei muito impressionado. Mais tarde, meu diálogo interno com antropólogos envolveu sobretudo Claude Lévi-Strauss.

Aby Warburg, pensador da história das imagens que buscava relações entre épocas distintas, é uma fonte importante para seus ensaios sobre iconografia política e para sua obra em geral. Que caminhos Warburg pode abrir para um historiador?

Conheci a obra de Warburg nos anos 1960, meu diálogo com ela e com a tradição inspirada por ela continua desde então (publiquei o ensaio “De Warburg a Gombrich” em1966, e outro intitulado “A tesoura de Warburg” em 2013). Sou fascinado pela abordagem de Warburg (mais do que por suas conclusões): sua habilidade em combinar a análise detalhada de um caso com uma perspectiva teórica ampla. “Deus está nos detalhes”, como ele mesmo gostava de dizer. Eu aceitaria essa frase como uma definição da micro-história.

A literatura também está muito presente no seu trabalho. Os ensaios de “Medo, reverência, terror” citam de Proust a Orwell. E a estrutura de seus livros tem características narrativas. O que você aprendeu sobre pesquisa histórica com a literatura?

O romance e a poesia nos transformam em habitantes temporários de mundos ficcionais, ao mesmo tempo próximos e diferentes do mundo real. Para historiadores, a ficção é um alimento e também um desafio. Mas o desafio também pode funcionar ao inverso: “Vou ser o maior historiador do século XIX”, disse Balzac. Nossa abordagem do mundo real está saturada de ficção, e a dos ficcionistas, de História. As duas dimensões estão relacionadas de forma intrincada, por isso devemos estar sempre atentos às fronteiras que existem entre elas. Historiadores abordam esses essas questões de forma mais técnica — mas somos todos confrontados com elas, a cada instante. 

Quais foram as maiores mudanças no campo da historiografia desde que você publicou seu primeiro livro, “Os andarilhos do bem” (1966)?

Muita coisa, claro. Comecei a aprender o ofício de historiador em um mundo dominado pelo confronto entre Estados Unidos e União Soviética e pela descolonização. A União Soviética desapareceu, novos atores se tornaram protagonistas. Instituições europeias foram criadas, mas a Europa é mais marginal hoje do que naquela época. A chamada “globalização”, processo antigo, entrou em ritmo frenético. Historiadores tentam lidar com esses desafios usando ferramentas diversas. A micro-história, ou seja, a história analítica, é uma delas. Hoje o diálogo entre antropólogos e historiadores, que inspirou meu primeiro livro, parece fora de moda. Eu ainda o considero promissor.

"O Queijo e os Vermes" Carlo Ginzburg. Um verdadeiro egrégio.

No inicio do ano de 2013, comecei a ler um livro intitulado: "o Queijo e os Vermes" de autoria do professor italiano Carlo Ginzburg. Onde explora as diversas visões de um simples moleiro que morava na região do Friuli, no nordeste da Itália. À primeira vista, fiquei atraído pelo titulo, e logo em seguida pelo prefácio, e finalmente comecei a ler. E daí por diante decidi hoje, fazer uma contextualização abordando o que achei de mais "importante" acerca desta obra-prima.




                                                             Carlo Ginzburg
                                                                                                            



Carlo Ginzburg nasceu no dia 15 de abril de 1939 na cidade de Turim, na Itália. Sua formação é História e Antropologia. Lecionou nas melhores universidades do mundo tais como: Bolonha, Yale, Princeton, Harvard, Califórnia e Lecce. Em 2006 retornou à Itália para lecionar na Scuola Normale Superiore de Pisa, onde trabalhou até 2010;

Ao pesquisar uma seita italiana de curandeiros e bruxos, o historiador Carlo Ginzburg, deparou-se com um julgamento especialmente detalhado. Tratava-se do depoimento de um simples moleiro que morava na região nordeste da Itália, chamado Domenico Scandella, ou simplesmente Menocchio. Que em pleno século XVI, em 1584 ousara afirmar que o mundo tinha origem na putrefação. "Tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma imensa massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e estes foram o anjos." Com essas palavras, Menocchio deixava os inquisidores admirados, e ao mesmo tempo assustados, por tamanha insolência de um simples homem, pobre e humilde. A partir dessa documentação, nosso pesquisador reconstitui boa parte dos passos de Menocchio, para podermos criar uma hipótese geral sobre a cultura popular da Europa pré-industrial. Esse homem simples, e pobre, que trabalhava de tudo um pouco; horas era moleiro; carpinteiro; marceneiro; pedreiro.  Era casado, e tinha sete filhos. Levava relativamente uma vida tranquila, na pequenina aldeia do Friuli até começar a expor suas opiniões sobre tudo que era inquestionável aos olhos dos eclesiásticos. Ginzburg procura entender suas ideias e questionamentos a partir das perguntas (feitas pelos inquisidores) e pelas respostas (que Menocchio respondia) e onde esse moleiro havia aprendido tanto sobre o mundo. A partir de que livro, Menocchio havia lido, e assimilado tudo que dizia. Principalmente sobre as origens da nossa Terra. E há razão para tanto mistério? Claro que sim. Vejamos: no século XVI, pouquíssimas pessoas tinham acesso a livros; de dez habitantes em uma cidade, apenas um sabia ler e este era o padre; e por último, as repressões que as pessoas sofriam caso fossem flagradas lendo algum livro proibido pela Inquisição, eram severamente punidas, desde torturas até as fogueiras em praças públicas, para servirem de exemplo à comunidade.

Durante a leitura do livro, Ginzburg faz certas observações das quais são de muita importância para podermos ter um "norte" a seguir e não nos atrapalharmos durante a leitura. Por exemplo, na página 101 depois de vários questionamentos entre o inquisidor e o moleiro, Ginzburg faz uma pergunta entre parênteses para poder chegar a um consenso sobre aquele palavrório: "(...) caso contrário, por que teriam conduzido um interrogatório tão detalhado?(...)" pág. 101. Ou seja, faz também com que pensemos sobre esta colocação, não é uma mera pergunta. Vale lembrar, que quando alguém era considerado um herege, por definitivo, os cardeais responsáveis, não toleravam tanto engodo por parte dos acusados. E assim, acabavam de vez, literalmente, com a vida destas pessoas.
Seguindo por esse caminho, nosso pesquisador faz uma apreciação no decorrer do livro: "Muitas vezes vimos aflorar, através das profundíssimas diferenças de linguagem, analogias surpreendentes entre as tendências que norteiam a cultura camponesa que tentamos reconstruir e as de setores mais avançados na cultura quinhentista." pág. 189. Ou seja, é como se uma determinada sociedade fosse feita de "baixo pra cima" do mais alto escalão (nobres, reis) para baixo (camponeses, burgueses) onde as ideias surgem do âmbito das classes dominantes. Esse renovado esforço de obter hegemonia assumiu formas diversas nas várias partes da europa; mas a evangelização do campo po meio dos jesuítas e a organização religiosa capilar baseada na família, executada pelas igrejas protestantes, podem ser associadas numa mesma orientação. A ela equivale-se, em temos de inibição dos processos contra a bruxaria e o rígido controle dos grupos marginalizados, assim como dos forasteiros e ciganos. O caso de Domenico Scandella se encaixa perfeitamente nesse quadro de repressão e extinção da cultura popular.

Sobre este homem, sabemos muitas coisas sobre sua vida, suas ideias, e perspectivas sobre o mundo. Podemos afirmar como no próprio posfácio do livro diz: "Menocchio é um herói, ou mártir da palavra." Devido sua vontade de desbravar todas as impossibilidades que estava à sua frente. Poderia muito bem, fugir. Mas, decidiu enfrentar a ira dos cardeais inquisidores, que de uma certa maneira também aprenderam com o moleiro algo que nem eles mesmos estavam acostumados a ouvirem. Por mais que fossem letrados e capacitados para tal assunto. Menocchio morre como um herói, que por mais que fosse castigado, humilhado e torturado, não iriam de maneira nenhuma amedrontá-lo pela sua perseverança em espalhar novos ideias sobre um Mundo que o próprio mundo não conhecia.




Referências:

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo. Ed. Companhia de Bolso. 2012

http://www.sscnet.ucla.edu/history/ginzburg/

VAINFAS, RonaldoOs protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002